Embora, desde que nasce e na Educação
Infantil, a criança esteja cercada e participe de diferentes práticas letradas,
é nos anos iniciais (1º e 2º anos) do Ensino Fundamental que se espera que ela
se alfabetize. Isso significa que a
alfabetização deve ser o foco da ação pedagógica. Nesse processo, é preciso que
os estudantes conheçam o alfabetoe a mecânica da escrita/leitura – processos
que visam a que alguém (se) torne alfabetizado, ou seja, consiga “codificar e
decodificar” os sons da língua (fonemas) em material gráfico (grafemas ou
letras), o que envolve o desenvolvimento de uma consciência fonológica (dos fonemas
do português do Brasil e de sua organização em segmentos sonoros maiores como
sílabas e palavras) e o conhecimento do alfabeto do português do Brasil em seus
vários formatos (letras imprensa e cursiva, maiúsculas e minúsculas), além do
estabelecimento de relações grafofônicas entre esses dois sistemas de
materialização da língua. Dominar o sistema de escrita do português do Brasil
não é uma tarefa tão simples: trata-se de um processo de construção de
habilidades e capacidades de análise e de transcodificação linguística. Um dos
fatos que frequentemente se esquece é que estamos tratando de uma nova forma ou
modo (gráfico) de representar o português do Brasil, ou seja, estamos tratando
de uma língua com suas variedades de fala regionais, sociais, com seus
alofones35, e não de fonemas neutralizados e despidos de sua vida na língua
falada local. De certa
maneira, é o alfabeto que
neutraliza essas variações na escrita.
Assim,
alfabetizar é trabalhar com a apropriação pelo aluno da ortografia do português
do Brasil escrito, compreendendo como se dá este processo (longo) de construção
de um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento fonológico da língua pelo
estudante. Para isso, é preciso conhecer as relações fono-ortográficas, isto é,
as relações entre sons (fonemas) do português oral do Brasil em suas variedades
e as letras (grafemas) do português brasileiro escrito. Dito de outro modo,
conhecer a “mecânica” ou o funcionamento da escrita alfabética para ler e
escrever significa, principalmente, perceber as relações bastante complexas que
se estabelecem entre os sons da fala (fonemas) e as letras da escrita
(grafemas), o que envolve consciência fonológica da linguagem: perceber seus
sons, como se separam e se juntam em novas palavras etc. Ocorre que essas
relações não são tão simples quanto as cartilhas ou livros de alfabetização
fazem parecer. Não há uma regularidade nessas relações e elas são construídas
por convenção. Não há, como diria Saussure, “motivação” nessas relações, ou
seja, diferente dos desenhos, as letras da escrita não representam propriedades
concretas desses sons.
A
humanidade levou milênios para estabelecer a relação entre um grafismo e um som.
Durante esse período, a representação gráfica deixou de ser motivada pelos
objetos e ocorreu um deslocamento da representação do significado das palavras
para a representação convencional de sons dessas palavras. No alfabeto
ugarítico, por exemplo, as consoantes, mais salientes sonoramente e em maior
número, foram isoladas primeiro.
Pesquisas sobre a construção da língua
escrita pela criança mostram que, nesse processo, é preciso:
·
diferenciar desenhos/grafismos
(símbolos) de grafemas/letras (signos);
·
desenvolver a capacidade de
reconhecimento global de palavras (que chamamos de leitura “incidental”, como é
o caso da leitura de logomarcas em rótulos), que será depois responsável pela
fluência na leitura;
·
construir o conhecimento do
alfabeto da língua em questão;
·
perceber quais sons se deve
representar na escrita e como;
·
construir a relação
fonema-grafema: a percepção de que as letras estão representando certos sons da
fala em contextos precisos;
·
perceber a sílaba em sua
variedade como contexto fonológico desta representação;
·
até, finalmente, compreender o
modo de relação entre fonemas e grafemas, em uma língua específica.
Esse
processo básico (alfabetização) de construção do conhecimento das relações
fonografêmicas em uma língua específica, que pode se dar em dois anos, é, no
entanto, complementado por outro, bem mais longo, que podemos chamar de
ortografização, que complementará o conhecimento da ortografia do português do
Brasil. Na construção desses conhecimentos, há três relações que são muito
importantes: a) as relações entre a variedade de língua oral falada e a língua
escrita
(perspectiva sociolinguística);
b) os tipos de relações fono-ortográficas do português do Brasil; e c) a
estrutura da sílaba do português do Brasil (perspectiva fonológica). Mencionamos
a primeira relação ao dizer que a criança está relacionando com as letras não
propriamente os fonemas (entidades abstratas da língua), mas fones e alofones
de sua variedade linguística (entidades concretas da fala). O segundo tipo de
relações – as relações fono-ortográficas do português do Brasil – é complexo,
pois, diferente do finlandês e do alemão, por exemplo, há muito pouca
regularidade de representação entre fonemas e grafemas no português do Brasil.
No português do Brasil, há uma letra para um som (regularidade biunívoca)
apenas em poucos casos. Há, isso sim, várias letras para um som – /s/ s, c, ç,
x, ss, sc, z, xc; /j/ g, j; /z/ x, s, z e assim por diante –; vários sons para
uma letra: s - /s/ e /z/; z - /s/, /z/; x - /s/, /z/, /∫/, /ks/ e assim por
diante; e até nenhum som para uma letra – h, além de vogais abertas, fechadas e
nasalizadas (a/ã; e/é; o/ó/õ).
Dos 26
grafemas de nosso alfabeto, apenas sete – p, b, t40, d36, f, v, k – apresentam
uma relação regular direta entre fonema e grafema e essas são justamente as
consoantes bilabiais, linguodentais e labiodentais surdas e sonoras. Essas são
as regulares diretas. Há, ainda, outros tipos de regularidades de
representação: as regulares contextuais e as regulares morfológico-gramaticais,
para as quais o aluno, ao longo de seu aprendizado, pode ir construindo
“regras”.
As regulares contextuais têm
uma escrita regular (regrada) pelo contexto fonológico da palavra; é o caso de:
R/RR; S/SS; G+A,O,U/ GU+E,I; C+A,O,U/QU+E,I;M+P,B/N+outras, por exemplo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário